domingo, março 22, 2009

Uma francesinha entre lustres

Restaurante Boca do Lobo

Por momentos a cena remete-nos para Tráfico, o filme de João Botelho em que um empregado vestido a rigor e de luvas brancas colocadas serve sardinhas assadas num jantar da alta sociedade, algures num palacete no Estoril. Na vida real a ironia não é tão refinada, mas não anda longe. Estamos no salão do restaurante Boca do Lobo, num histórico hotel de cinco estrelas do Porto (Infante de Sagres). O lugar é requintado e a maioria dos clientes respeita o código, “casual smart”. Sentados à mesa, os procedimentos habituais: um sorriso de boas vindas discreto, guardanapo desdobrado, água servida, azeite e pão para molhar e o menu para ir acompanhando o desfile gastronómico. Espera-se pelo primeiro prato e eis que nos colocam à frente algo que não consta do programa: uma mini-francesinha.

Albano Lourenço, o Chefe do Arcadas da Capela (uma estrela Michelin), em Coimbra e responsável por este Boca do Lobo é o autor da provocação, e a tão popular iguaria tripeira marca o inicio de um jantar de harmonização com os vinhos da Quinta do Crasto que decorreu, em meados deste mês, no âmbito do evento vínico-gastronómico, Essência do Vinho.

Albano Lourenço preparou um menu especial para o momento e depois da referida francesinha fez sair para a mesa uma salada de lombo de pescada da Póvoa com vinagreta de pimento vermelho e redução de vinagre balsâmico. Pescada é pescada e por mais que evidenciem os predicados da sua proveniência, remete-me sempre para um castigo de infância. Provavelmente estarei a insultar a espécie, pois um lombo tão suculento, bem tratado e em boa companhia, merecia maior consideração neste texto (nada que uma sessão de terapia não resolva). De seguida chegou-nos o melhor prato da noite, um creme de couve penca com tamboril fumado. À partida não é a associação que mais se espera, mas a agradável surpresa surge quando o excelente tamboril fumado entra no palato em conjunto com aquela espécie de caldo verde aprimorado (discutível, apenas o vinho escolhido para acompanhar, o Crasto tinto 07. Teria preferido o branco 08 da mesma marca, que veio com o primeiro prato). Lombo de peito de pato com gratinado de queijo da Serra, foi a proposta seguinte. Bem executado mas demasiado previsível, sem grandes distinções face à versão original gaulesa (acompanhou o tinto Quinta do Crasto Reserva 06, um dos bons exemplares desse mau ano vinícola). Nas sobremesas, “o melhor bolo de chocolate do mundo”, assim mesmo, entre aspas, respeitando a receita que Carlos Braz Lopes tornou famosa na sua casa de Campo de Ourique (e que faz sucesso neste momento, também em S. Paulo, no Brasil). O acompanhamento com gelado de tomilho trouxe-lhe maior frescura e o Porto LBV 04 do Crasto, o complemento certo.

Em termos de serviço a cordialidade (quase sempre) habitual no Porto, esteve presente. No entanto, a demora entre pratos foi, por vezes, desesperante e os vinhos necessitavam de maior atenção na temperatura de serviço.

É importante corrigir esse tipo de situações, uma vez que estes jantares vínicos, a preços, até certo ponto, moderados (40€, pax), constituem uma boa oportunidade para conquistar novos clientes. Por último, gostaria ainda de acrescentar que quando alguém é atraído a um local pelo currículo do Chefe, estará, por certo, à espera de algo mais exemplificativo da sua autoria do que uma refeição com bons produtos e bem executada tecnicamente e esta só em parte correspondeu a esse desejo de autoria. De qualquer forma apesar de ser maior apreciador de sardinhas do que francesinhas, posso dizer que este jantar foi mais interessante do que o filme de João Botelho.

Contactos: Boca do Lobo - Hotel Infante de Sagres, Praça D. Filipa de Lencastre, 62, Porto ; Tel: 223 398 500 ; www.hotelinfantesagres.pt

texto publicado originalmente no suplemento Outlook (Semanário Económico) em 21 de Março 2009.

O mito do Skrei

"No es una especie distinta, ni ninguna mutación. Hay skrei allí donde desova el bacalao. Aunque nos lo venden como si fuera el único sitio del mundo donde esto ocurre, el bacalao no sólo desova en las Lofoten. También lo hace en Groenlandia, en Gran Sol, en Terranova, en Islandia… ¿No saben esto nuestros cocineros? ¿Y los periodistas que repiten año tras año los mismos textos con los mismos tópicos?"

Tal como o David Lopes Ramos por cá, em Espanha, Carlos Maribona não acredita no mito do Skrei e diz que o rei vai nu (aqui).

segunda-feira, março 09, 2009

Terroir Portugal em terras da Catalunha

Nougat de frutos secos e manteiga de cacau com Vinho do Porto parece à partida uma ligação um pouco estranha para quem sempre ouviu falar em doces de ovos ou, quanto muito, chocolate escuro para acompanhar o mais prestigiado dos vinhos portugueses. Essa foi apenas uma das ligações proposta por José Avillez (Chef do Tavares, em Lisboa) e Bento Amaral (enólogo do Instituto do Vinho do Porto) na apresentação conjunta realizada no Forum Gastronómico de Girona.
Mas esta não foi aúnica presença portuguesa neste importante fórum (o maior congresso com feira da Europa) dedicado a profissionais e gourmets, que decorreu entre 20 e 25 de Fevereiro nesta cidade da Catalunha. Este ano o certame fez 10 anos e Portugal foi o país convidado, o que fez com que a presença nacional se fizesse sentir, num evento que reuniu algumas das maiores estrelas mundiais do sector, como por exemplo, Ferran Adriá, Pierre Gagnaire, Michel Bras ou Alain Passard– todos eles detentores das tão cobiçadas três estrelas do Guia Michelin.
Das vastas actividades do programa, entre oficiais e paralelas, destacaram-se as sessões de cozinha ao vivo num auditório principal com capacidade para 2000 pessoas que encheu para ver e ouvir Ferran Adriá numa retrospectiva da sua carreira e dos 10 anos deste fórum.

O dia de Portugal foi assinalado com um almoço no restaurante do recinto, onde foram servidas mais de 300 refeições elaboradas por Chefes portugueses a partir de produtos bem conhecidos no nosso rectângulo mas que são mais ou menos anónimos fora de portas, como é o caso do queijo da Serra da Estrela, da maçã Bravo de Esmolfe, ou da Ostra do Sado. À noite, o best of do nosso Terroir iria continuar com um jantar num dos principais hotéis da cidade, o Palau de Bellavista. Tártaro de ostras, percebes com caldo de perdiz, amêijoas à Bulhão Pato, mousse de tremoços, creme de peixe com feijões ‘papo de rola’, lascas de bacalhau e sabores de meia desfeita, polvo assado com batata-doce de Aljezur, lombo de cordeiro do Alentejo sobre crocante de alheira e pão de milho, queijo de Azeitão e, de sobremesa, um “ca os” de doces conventuais (acompanhados por vários vinhos da Quinta do Portal) foram algumas das propostas interpretadas de forma actualizada por outros cinco dos mais cotados chefes lusos (Victor Sobral, Fausto Airoldi, Bertílio Gomes, Henrique Sá Pessoa e Luís Baena) e servidas numa sala repleta de convidados, entre imprensa, organismos oficiais e profissionais do sector (com destaque para os já citados Adriá e Gagnaire).

Portugal continuou no palco no dia seguinte. No final da manhã, um aroma de alheira invadiu o auditório principal fazendo salivar muitos dos presentes. O responsável por este comportamento pavloviano foi Augusto Gemelli, um italiano há muito radicado em Lisboa, proprietário e Chef do restaurante que ostenta o seu nome. Gemelli utilizou a alheira de Mirandela e o Vinho do Porto como elementos base da sua demonstração. Na primeiro prato cozeu o enchido em borras de Porto Vintage, desfê-lo e sobrepô-lo por entre camadas de um crocante à base de trigo, acompanhado por um risotto de cevada e grelos. No segundo prato, transformou alheira e couve portuguesa em hamburger e juntou-lhe um zabaione de parmesão e redução de moscatel do Douro, deixando evidente, em ambos os pratos, a ligações entre estes ingredientes e a base da sua cozinha a Italiana.



Seguiu-se-lhe Luís Baena (um dos precursores da gastronomia molecular no nosso país e actual responsável pela cozinha do Terraço do Hotel Tivoli, também em Lisboa) que mostrou o portfolio das suas criações, em imagens projectadas, enquanto fazia evoluir a sua interpretação de pratos tão "extravagantes" como ovos verdes ou migas de
bacalhau (no primeiro envolveu-o numa polme de pão ralado japonês; no segundo acompanhou-as com tripas de bacalhau envolvidas numa redução de beterraba e acrescentou-lhe, no final, um uma pequena folha de ouro).
No final da tarde, no Taller 1, o espaço mais pequeno onde decorreram as sessões temáticas que incluíam degustação, foi então a vez do Chef José Avillez e do enólogo Bento Amaral desafiarem o público, com ligações entre sobremesas e Portos. Se por um lado havia um objectivo didáctico de explicar as características dos diversos tipos de Vinho do Porto (que abarca um conjunto de denominações e especificidades que tornam o assunto confuso junto do apreciador médio, mesmo o Português), por outro lado pretendia-se mostrar a versatilidade nas ligações entre ambos.O desafio começou com um casamento entre o tal Nougat doce e salgado e um Porto Barros Branco. O entendimento foi de tal forma feliz que mais parecia estarem em pecado, há bastante tempo (o salgado do nougat faz sobressair o elemento doce, bem como algumas notas de frutos secos, habitualmente pouco evidentes no Porto seco). Seguiram-se: uma mini rabanada com gelado de canela a acompanhar um Porto Ferreira 10 anos; Sericaia em três texturas (na verdade, duas) com ameixa de Elvas, para um Porto Dalva 30 anos; Panacotta de requeijão de Seia com coulis de amoras silvestres, com um Porto Graham’s LBV 2003 (a menos conseguida das ligações, com o elemento lácteo a sobrepor-se a este tipo de Porto) e, para fechar a sessão em beleza, uma esfera de chocolate com frutos vermelhos para um Porto Taylor’s Vintage, Quinta da Terra Feita 1988, o mais conceituado dos vinhos servidos.

No final ficou no ar a sensação de tarefa cumprida e já se falava mesmo na possibilidade de trazer este fórum para Portugal, num futuro próximo. Apenas na parte da feira a presença nacional deixou muito a desejar. Só uma empresa nacional marcou presença. Tratou-se da Imperdivelmente, representante de produtos gourmet e organizadora de eventos e que foi também a entidade a quem se deve uma boa parte dos méritos da presença portuguesa no fórum.
Resta agora esperar que nuestros hermanos aceitem desafio lançado pelo presidente do Turismo de Portugal, Luis Patrão, que no final no jantar de véspera num portunhol irrepreensível, agradeceu a presença de todos e lançou o convite para que visitassem Portugal.

texto publicado originalmente no suplemento Outlook (Semanário Económico) em 7 de Março 2009.

sexta-feira, março 06, 2009

Essencial


Hoje é dia de rumar a norte para mais uma Essência do Vinho. O programa promete (mais pormenores, aqui)

Eau de alheira e muito mais

Será que a mini-rabanada com gelado de canela (na foto) do Avillez se deu bem com o casamento arranjado com um Porto de 10 anos? e o nougat doce e salgado com o Barros branco seco? E será verdade que o Gemelli espalhou aroma de alheira pelo auditório principal? E o Ferran Adriá terá gostado do polvo com batata-doce de Aljezur do Bertílio Gomes fez? E o Luís Baena terá mesmo criado caos no Convento?

Amanhã no suplemento Outlook do Semanário Económico o overview que fiz sobre a presença portuguesa no Forum Gastronómico de Girona.




segunda-feira, março 02, 2009

Um chamamento à beira rio

Restaurante Le Club

Manhã cinzenta de Domingo, torradas e café com leite e jornais da véspera consumidos. Tudo apontava para um dia de “empastelamento”, ou para um Domingo da cópia, como lhe chama uma amiga minha. Da parte inferior esquerda do neurónio começou a soar a ideia: Vila Franca...que tal ir almoçar a Vila Franca? Há por lá um restaurante que há muito quero conhecer.

Proposta lançada, proposta aceite. São 14.30h e debaixo de uma chuva irritante, fizemo-nos à estrada. Quase todos os meses passo por ali quando faço a A1 a caminho de casa dos meus pais. Tento recordar-me se alguma vez lá terei estado e não chego a nenhuma conclusão. A proposta tem os seus riscos pois nem sequer faço ideia onde é o tal restaurante, nem se ainda servem àquela hora, ou tão pouco, se estará aberto. Felizmente levo alguém que conhece o pais de lés a lés e que, com uma perna às costas, descobre o local. O nome é estranho para uma casa em terra de tradições tauromáquicas: Le Club.

O Le Club fica numa casa antiga onde em tempos conviveram latifundiários e outras famílias bem da região. Lá dentro, à direita, um dos espaços ainda conserva a memoria desses tempos. Do outro lado, o restaurante. Várias salas de decoração contemporânea com motivos árabes comunicam entre si. O restaurante está por nossa conta e na altura não sei se isso nos fez sentir especiais, ou se lançou a dúvida no ar. As referencias que tinha eram boas e a consulta da carta prometia.

E de facto havia razões para acreditar nas referencias e na intuição do neurónio que, nessa manhã, tinha lançado o repto de uma ida a Vila Franca. A carta de Henrique Mouro (um Chef com provas dadas no Pestana Valle Flor, Meridien, Bica do Sapato, entre outros lugares) é bastante sugestiva e algo arrojada. Promete modernidade num convívio são entre produtos da região, do país e de alem fronteiras.


Estamos no mês do Sável e a oferta do chefe recorda-nos o momento: uma posta frita deste peixe de rio chega-nos acompanhada das suas ovas.

cavala numa bisque de lavagante e algas

Salmonete no forno com feijoada de choco (um pouco mais de apuro na feijoada e estaria perfeito).



Linguado com batata-doce, amêijoa e tomate compotado: excelente conjugação de sabores; peixe no ponto; envolvimento em massa kadaif a dar uma textura contrastante ao conjunto: muito, muito bom.

Pudim de azeitona doce e aguardente: o liquido é incendiado e vertido por cima do pudim de ovos com pedaços de azeitonas e frutos secos. É assim uma espécie de “christmas pudding” à moda da lezíria. Muito interessante, por sinal (e que combina muito bem com o Porto Tawny que nos foi oferecido).

Esta refeição confirmou tudo o que tinha lido sobre este “Le Club” pelo que fiquei bastante agradecido ao neurónio que teve a ideia e me conduziu a Vila Franca de Xira. Afinal nem todos os Domingos cinzentos têm necessariamente esse tom.

Por esta refeição, que foi acompanhada por um belo Covela branco 2006, pagou-se 35€/pax.

contactos: Av. Combatentes da Grande Guerra, nº 40, Vila Franca de Xira; Telef: 21 309 897 326 (www.leclub-restaurante.com)