segunda-feira, maio 18, 2009

Mais do mesmo. E ainda bem

Restaurante Vila Lisa

Quando um restaurante começa a fazer furor todos querem lá ir. Primeiro há o “passa a palavra”. Depois saem os primeiros artigos e as primeiras criticas nos jornais. Os donos rejubilam de contentamento por tamanha publicidade e o retorno é garantido (já os habitués torcem o nariz por potenciais perdas de privilégios). O processo não é muito diferente quando alguém descobre um qualquer Santo Graal gastronómico e o divulga da mesma forma. Acontece que após a exaltação inicial dá-se um hiato e só de tempos em tempos passamos a ouvir falar desse local. Ou nem isso. Voltamos lá passado um bom período e no caminho fazemos conjecturas sobre o que vamos encontrar. Quando está cheio e a integridade que lhe deu fama se mantém, sentimo-nos contentes. Quando o inverso ocorre é porque provavelmente teve o que merecia – embandeirou-se em arco com o sucesso e descurou-se na qualidade. O inglório acontece quando todos os predicados se mantêm mas simplesmente saiu do circuito, ou de moda, muitas vezes pelo mesmo “passa a palavra” que agora enaltece os feitos da tasquinha do Zé que por acaso até trabalhou por lá.

Em recente périplo pelo Algarve veio à baila o Vilalisa, a casa que os Josés, Vila e  Lisa, criaram há cerca de 30 anos e que em pouco tempo passou de petisqueira para amigos, a referência gastronómica nacional. Há já algum tempo que não ouvíamos falar deste lugar e por isso havia uma boa razão para lá voltar.

Diga-se desde já que pouca coisa mudou. E ainda bem. As paredes continuam a servir de suporte às pinturas de José Vila e as mesas compridas para partilhar com quem mais estiver. Mantém-se o sistema do come-se o que vier para a mesa e o vinho a jarro (embora aqui, nos últimos anos, tenha havido uma cedência ao público enófilo e passando a existir uma carta de vinhos e copos a preceito para os servir). E o que nos chega continua a ser basicamente o mesmo, com uma ou outra variante, consoante os dias: três ou quatro petiscos de entrada, dois pratos de peixe, dois de carne e sobremesa. Inalterado também continua o dom de quem confecciona esta cozinha de raiz algarvia com uma outra influência vizinha. Chega a ser assombroso como é possível fazer de um prato de batatas cozidas com azeite e alho, uma iguaria bradar aos céus de tão assertivo ser o tempero (acreditem que a adjectivação não é exagerada nem provocada pelo excesso de vinho da casa, até porque este é apenas potável). Depois há aquele pão de Odiáxere a ajudar à festa, o que dificulta a contenção. Mas aconselha-se mesmo a refrear a gula porque por esta altura a procissão nem se quer entrou ainda no adro. No dia que o visitámos havia estupeta de atum - com um óptimo tomate que parecia já de época – e umas lulinhas com tinta. A sopa de cação veio como mandam as regras (generosos nacos de peixe, pão do pecado e o caldo espesso com farinha com um corte de vinagre) e o polvo assado com batatas, para além do bom, numa perfeita conjugação entre a carne tenra e uma ligeira caramelização das batatas nos sucos do assado. De seguida fez a vez um arroz de pato tipo receita de família e, depois, algo que tanto se ansiava: sopa de grão e rabo de boi. Embora este ultimo ingrediente se apresentasse um pouco resistente, toda a ligação, bem como o tempero e o aroma a hortelã, não deixaram defraudar as expectativas. De sobremesa tivemos o tradicional queijo de figo, filhoses e, como hipotéticos auxiliares da digestão, aguardente de medronho e um licoroso da Adega Cooperativa de Gouxa.

É bom saber que há lugares que pouco mudam e que acima de tudo mantêm a sua essência e integridade. Nós continuaremos a ir lá. E não cremos na possibilidade de um qualquer Zé reproduzir algo de semelhante.

Contactos:   Rua Francisco Bívar - Mexilhoeira Grande (Portimão) Telefone: 282968478

Texto publicado originalmente no suplemento Outlook (Semanário Económico) em 16 Maio 2009

sábado, maio 02, 2009

Homenagear com lata

Restaurante 100 Maneiras

Existe na Rua da Rosa uma padaria que vende pão com chouriço fora de horas. Quando a noite vai longa e a fome aperta, por cada minuto que passa, a sensação de estarmos na presença de uma iguaria cresce em proporção idêntica. Faz-se a transacção, dá-se uma dentada e confirma-se o que há muito sabíamos: que o pão é apenas aceitável e o chouriço, apesar de superlativo no nome (“chourição”) tem presença residual e qualidade abaixo do sofrível. Mas o aroma no ar trai-nos. Trai o mais imberbe e etilizado dos Mackids e trai o mais acostumado dos palatos. Ora é aqui que entra Ljubomir Stanisic, um dos mais reputados Chefes a trabalhar em Portugal. Há uns meses no Bairro Alto depois de ter granjeado fama (bom…e ruína) em Cascais, estejugoslavo de nascimento e português por (ad)opção também já caiu na esparrela. Só que em vez de reclamar, resolveu homenagear, criando um chouriço com pão. É verdade que é apenas uma mini entrada, mas garante-se que tem mais de enchido do que de pão. Também é verdade que custa uns bons euros a mais mas apenas porque vem integrada num menu de degustação com mais uma dezena de comparsas. E esta é a única forma possível de se jantar no 100 Maneiras (não servem almoços), uma vez que não existe opção à carta. A cozinha pode não ser tanto de mercado (no sentido de ter propostas diferentes todos os dias) como se tem escrito, mas tem mudado com alguma frequência. Do seu passado de Cascais vieram algumas propostas, mas em termos de custo houve uma maior adequação à conjuntura actual. Se em Cascais uma refeição destas características podia chegar facilmente aos 100€ (embora utilizando alguns produtos mais nobres, que a encarecia) aqui fica por metade ou menos, dependendo do vinho que acompanhar. O menu custa 28€ e tem dez pratos, incluindo alguns mais para o “micro” e uns limpa palatos pelo meio.

gelatina de uva com berbigão e creme de alho ; "bucha" de chouriço em pão 

Na Quinta-feira em que jantámos (a terceira refeição que lá fizemos desde que o espaço existe) a lotação estava esgotada mas isso não impediu que o primeiro prato chegasse sem grandes demoras. Tratava-se de um kadum, uma espécie de patanisca jugoslava em união de facto harmoniosa com a lusa alheira. O segundo prato, gelatina de uva com berbigão e creme de alho, pecou por excesso de doçura da gelatina (o que é pena porque a conjugação tem tudo para funcionar a preceito). O mesmo aconteceu no prato seguinte, com a inclusão de um pedaço de aloé vera num bom e fresco gaspacho com tártaro de sapateira. Entre estes dois pratos, veio a referida micro entrada de chouriço com pão (será que aceitam encomendas para uma versão macro?). Na proposta seguinte apreciávamos o tratamento adequado dado às vieiras e ao contraste entre o acídulo (cebola) e doce do puré de ervilhas. A Trouxa de espinafres e camarão com creme de cogumelos e molho de parmesão esteve a preceito e, de seguida, em jeito de provocação, uma lata de conserva veio à mesa. Lá dentro uma açorda de berbigão com coentros bem apaladada e um pequeno lombo de dourada (de pele bem tostada e matéria no ponto). Antes do prato de carne, um shot de gin Hendricks, pepino e espuma de água tónica, (um must!).

"Grande lata"

Com o palato limpo foi vez daquele que é já o prato “fetiche” do Chefe (e que Ljubomir refere que não sairá do menu): faceta (bochecha) de porco preto com puré de aipo bola, ar de mostarda e pinhões. A carne é assada a baixa temperatura durante 72 horas, tratamento que lhe concede um sabor mais assertivo e uma maciez que a faz desfazer na boca como manteiga. A combinação com o puré de aipo bola, funcionou às mil maravilhas (percebendo-se então porque é que o  “Mister” não quer mexer em equipa que ganha). Para conclusão, uma associação tradicional entre requeijão e doce de abóbora, só que em versão desconstruída em termos de texturas: o primeiro, em espuma; o segundo em sorbet e ainda um elemento estaladiço (crumble de noz). Uma ideia simples, criativa, e bem conseguida, tal como a refeição, no computo geral (mesmo que nem tudo tenha saído na perfeição).

faceta (bochecha) de porco preto com puré de aipo bola, ar de mostarda e pinhões


Quanto ao serviço, ele foi competente, informal e descontraído. Portanto, em sintonia com a filosofia da casa. Os vinhos têm um tratamento correcto e uma lista simples, com várias e boas opções e a preços razoáveis. Acompanhámos a refeição com um branco da Sicília que nos foi sugerido (Donnafugata Anthilia 07) e um tinto do Douro a copo.

É bom saber que Lubjomir Stanisic se está a dar bem com os ares do Bairro Alto e que se deixa também enganar com o aroma do pão com chouriço da Rua da Rosa.

Contactos:   Rua do Teixeira, 35 (Bairro Alto), Lisboa. Tel:21 099 0475  

Texto publicado originalmente no suplemento Outlook (Semanário Económico) em 1 Maio 2009