quarta-feira, maio 07, 2008

A elegância do pós-deslumbramento

Restaurante Tavares

Para todos os que têm vindo a acompanhar a actividade gastronómica nacional, José Avillez é neste momento um dos Chefes de que mais se fala. Quem assistiu há cerca de um mês, perante um auditório cheio à sua sessão de show cooking no festival Peixe em Lisboa percebe em grande parte porquê: a forma cativante e entusiástica de comunicar, a facilidade com que transmite o seu saber e a apresentação sofisticada, criativa mas ao mesmo tempo simples, da sua cozinha - onde o produto é soberano, e todos os outros elementos (não mais do que dois ou três, salvo uma ou outra excepção) servem para o destacar e não para o esconder - fazem com que já tenha conseguido reunir à sua volta um conjunto vasto de admiradores, mesmo antes de chegar aos 30 anos. A curiosidade à sua volta aumentou ainda mais quando se soube que tinha aceite o convite para chefiar a cozinha do mítico Tavares, depois de seis meses na Catalunha, onde esteve a estagiar no famoso El Bulli de Ferran Adriá. Muitos disseram que o seu perfil era demasiado jovem para um lugar histórico e majestoso como este. Outros afirmaram, que estaria a dar um passo maior do que as pernas num local onde pelo menos dois chefes experientes e talentosos não foram bem sucedidos. Por tudo isto, e por nunca ter experimentado a cozinha de Avillez, era incontornável voltar ao Tavares, um ano e meio depois de aqui ter descrito a excelente refeição lá tida na era de Peudenier.
No Tavares pode-se escolher à carta, mas fazê-lo seria como alugar um Aston Martin com limitação de km ao perímetro do bairro. Talvez não seja necessário optar pelo Menu Surpresa (10 pratos, 95€), mas aconselho vivamente a opção que escolhemos: o Menu do Desassossego (7 pratos, 75 €) com o complemento de vinhos a copo (25€).
A sessão começou por vieiras em canneloni com ovas de truta e em tártaro com sumo de limão. Um produto, duas texturas diferentes, duas cozeduras diferentes, dois auxiliares diferentes e um resultado consensual: perfeito! De seguida: lagostins ligeiramente salteados com gelatina do seu caldo e “protengue” (sorbet?) de flor de laranjeira. A conjugação da subtileza e frescura do crustáceo em estado quase puro e a concentração do seu sabor em gelatina, com o sorbet a trazer-nos um apontamento de ligação surpreendente (estes dois pratos foram acompanhados pelo Albariño, Terras Gaudas 2006). A terceira proposta parecia querer fugir à regra minimal de elementos no prato. Considerei uma brincadeira de vários sabores e texturas em quantidade mínima (morangos, flores, toucinho gordo, crumble de broa de milho, azeitona desidratada em pó e ervilha torta) que serviram, sobretudo, para evidenciar a terrina foie gras como a rainha da corte (acompanhados em termos líquidos por um agradável Late Harvest do Esporão, 2006). Depois de brincarmos com esta espécie de smarties para crescidos, voltámos à filosofia minimal, com um salmonete assado, no ponto, com molho dos fígados e uma pequena batata recheada com tapenade de azeitona galega, numa ligação de sabores, desta vez, dados pelo contraste (e facilitados pela estrutura e boa acidez de um branco do Douro, o Muxagat 2006). No quinto prato fomos virtualmente transportados para uma sopa à alentejana by Avillez: ovo biológico cozido a 64º, uvas em tempura (repescando a tradição da utilização de uvas na sopa à alentejana em época das vindimas) e espuma de bacalhau e poejos. Seguiu-se o “leitão da cabeça aos pés com molho de coentrada, morango tépido com gelatina de vinho da Bairrada”: várias partes do leitão em contraste de sabores, texturas e cozeduras diferentes. O avinagrado dos pezinhos de coentrada vs. a gordura da entremeada; a pele crocante desta vs. a suculência da carne da perna; e ainda, uma parte da cabeça de consistência mais firme. O apontamento do morango com a geleia de vinho em vez do acompanhamento mais comum da laranja, foi uma ideia muito bem conseguida num prato com tanto de interessante como de arriscado (acompanhou um tinto do Dão, o Quinta das Estrémuas Reserva, 2003). Ao sétimo prato, um falso pastel de nata em forma de mil folhas desceu à terra, acompanhado de gelado de canela, para que pudéssemos finalizar e ascender ao céu em beleza. O efeito grandioso de um moscatel roxo de 2003, do produtor Horácio Simões, ajudou a essa ascensão.
O serviço não tendo sido tão perfeito como a refeição, esteve bem nos vários aspectos. Por ultimo gostaria de destacar uma prática pouco usual, mas agradável para quem sabe que vai receber uma “dolorosa” considerável: o couvert, a água e o café não são cobrados à parte.
Após esta experiência não tenho dúvidas em afirmar que José Avillez é a pessoa certa nesta nova fase do Tavares e que a sua cozinha elegante e criativa (mas sem truques de artificio) vai consagrá-lo, no mínimo, como uma referência no panorama nacional.

Contactos: Rua da Misericórdia 35/37 - Lisboa, Telefone: 213421112 http://www.tavaresrico.pt/

Publicado originalmente no jornal OJE (http://www.oje.pt/) em 7 de Maio de 2008

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