sábado, maio 02, 2009

Homenagear com lata

Restaurante 100 Maneiras

Existe na Rua da Rosa uma padaria que vende pão com chouriço fora de horas. Quando a noite vai longa e a fome aperta, por cada minuto que passa, a sensação de estarmos na presença de uma iguaria cresce em proporção idêntica. Faz-se a transacção, dá-se uma dentada e confirma-se o que há muito sabíamos: que o pão é apenas aceitável e o chouriço, apesar de superlativo no nome (“chourição”) tem presença residual e qualidade abaixo do sofrível. Mas o aroma no ar trai-nos. Trai o mais imberbe e etilizado dos Mackids e trai o mais acostumado dos palatos. Ora é aqui que entra Ljubomir Stanisic, um dos mais reputados Chefes a trabalhar em Portugal. Há uns meses no Bairro Alto depois de ter granjeado fama (bom…e ruína) em Cascais, estejugoslavo de nascimento e português por (ad)opção também já caiu na esparrela. Só que em vez de reclamar, resolveu homenagear, criando um chouriço com pão. É verdade que é apenas uma mini entrada, mas garante-se que tem mais de enchido do que de pão. Também é verdade que custa uns bons euros a mais mas apenas porque vem integrada num menu de degustação com mais uma dezena de comparsas. E esta é a única forma possível de se jantar no 100 Maneiras (não servem almoços), uma vez que não existe opção à carta. A cozinha pode não ser tanto de mercado (no sentido de ter propostas diferentes todos os dias) como se tem escrito, mas tem mudado com alguma frequência. Do seu passado de Cascais vieram algumas propostas, mas em termos de custo houve uma maior adequação à conjuntura actual. Se em Cascais uma refeição destas características podia chegar facilmente aos 100€ (embora utilizando alguns produtos mais nobres, que a encarecia) aqui fica por metade ou menos, dependendo do vinho que acompanhar. O menu custa 28€ e tem dez pratos, incluindo alguns mais para o “micro” e uns limpa palatos pelo meio.

gelatina de uva com berbigão e creme de alho ; "bucha" de chouriço em pão 

Na Quinta-feira em que jantámos (a terceira refeição que lá fizemos desde que o espaço existe) a lotação estava esgotada mas isso não impediu que o primeiro prato chegasse sem grandes demoras. Tratava-se de um kadum, uma espécie de patanisca jugoslava em união de facto harmoniosa com a lusa alheira. O segundo prato, gelatina de uva com berbigão e creme de alho, pecou por excesso de doçura da gelatina (o que é pena porque a conjugação tem tudo para funcionar a preceito). O mesmo aconteceu no prato seguinte, com a inclusão de um pedaço de aloé vera num bom e fresco gaspacho com tártaro de sapateira. Entre estes dois pratos, veio a referida micro entrada de chouriço com pão (será que aceitam encomendas para uma versão macro?). Na proposta seguinte apreciávamos o tratamento adequado dado às vieiras e ao contraste entre o acídulo (cebola) e doce do puré de ervilhas. A Trouxa de espinafres e camarão com creme de cogumelos e molho de parmesão esteve a preceito e, de seguida, em jeito de provocação, uma lata de conserva veio à mesa. Lá dentro uma açorda de berbigão com coentros bem apaladada e um pequeno lombo de dourada (de pele bem tostada e matéria no ponto). Antes do prato de carne, um shot de gin Hendricks, pepino e espuma de água tónica, (um must!).

"Grande lata"

Com o palato limpo foi vez daquele que é já o prato “fetiche” do Chefe (e que Ljubomir refere que não sairá do menu): faceta (bochecha) de porco preto com puré de aipo bola, ar de mostarda e pinhões. A carne é assada a baixa temperatura durante 72 horas, tratamento que lhe concede um sabor mais assertivo e uma maciez que a faz desfazer na boca como manteiga. A combinação com o puré de aipo bola, funcionou às mil maravilhas (percebendo-se então porque é que o  “Mister” não quer mexer em equipa que ganha). Para conclusão, uma associação tradicional entre requeijão e doce de abóbora, só que em versão desconstruída em termos de texturas: o primeiro, em espuma; o segundo em sorbet e ainda um elemento estaladiço (crumble de noz). Uma ideia simples, criativa, e bem conseguida, tal como a refeição, no computo geral (mesmo que nem tudo tenha saído na perfeição).

faceta (bochecha) de porco preto com puré de aipo bola, ar de mostarda e pinhões


Quanto ao serviço, ele foi competente, informal e descontraído. Portanto, em sintonia com a filosofia da casa. Os vinhos têm um tratamento correcto e uma lista simples, com várias e boas opções e a preços razoáveis. Acompanhámos a refeição com um branco da Sicília que nos foi sugerido (Donnafugata Anthilia 07) e um tinto do Douro a copo.

É bom saber que Lubjomir Stanisic se está a dar bem com os ares do Bairro Alto e que se deixa também enganar com o aroma do pão com chouriço da Rua da Rosa.

Contactos:   Rua do Teixeira, 35 (Bairro Alto), Lisboa. Tel:21 099 0475  

Texto publicado originalmente no suplemento Outlook (Semanário Económico) em 1 Maio 2009

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