terça-feira, fevereiro 03, 2009

Fugir ao óbvio, manter a tradição

Restaurante M’Ar de Ar Muralhas

A mesa estava posta à espera que os convidados chegassem. Sobre a mesma, várias iguarias da região provocavam água na boca de quem esperava: queijo de Serpa de meia cura, bom azeite para molhar o pão, presunto pata negra e uns cogumelos boletos salteados. Até aqui tudo normal, podíamos estar num restaurante regional do Alentejo ou até mesmo de qualquer outra parte do país. Mas ao chegar o primeiro prato, canja de peru preto com massinhas e hortelã, já daria para perceber que embora não estivéssemos propriamente num restaurante de cozinha pós-moderna estaríamos, pelo menos, num lugar que não quer ficar pelo óbvio (mesmo quando, numa região como esta, o obvio é muito bom)
O Alentejo tem uma gastronomia fortíssima e a grande maioria de quem procura esta vasta região, em busca dos prazeres da mesa, fá-lo com a mente e o palato focados na cozinha regional de cariz tradicional. E será que entre várias formas de cozinhar caça, fazer migas ou de apresentar uma sopa de poejos, de beldroegas ou de tomate, não haverá lugar para um cozinha mais criativa e com uma apresentação mais cuidada, ainda que assente nos mesmos princípios?
No restaurante do Hotel Mar d’Ar Muralhas (antigo Hotel da Cartuxa), em Évora, onde decorreu este almoço, o Chef António Nobre e a sua equipa fazem por isso. Com a canja de peru preto, António Nobre mostra-nos que nem todo o peru é insípido, que preto não é só o porco de chispe escuro e que nem só de galinha vive a canja. No prato seguinte o mar é convocado à mesa sob a forma de tentáculo de polvo e o Alentejo está patente no salteado em azeite e alho e no tomate assado com orégãos e batatinha nova, que acompanham. À moda das bochechas de porco, o Chef responde com um naco do cachaço do mesmo animal, que ficou noite e dia a cozer lentamente, a baixas temperaturas, para que aquela carne suculenta se pudesse desfazer na boca por entre uma garfada de migas de espargos, irrepreensíveis. Estamos no Alentejo onde imperam os doces conventuais e por aqui respeita-se a tradição, ainda que numa apresentação diferente. Em doses mínimas alinham-se uma sericá com ameixa de Elvas, uma Encharcada do Convento de Sta Clara e uma Sopa Dourada (doce à base de amêndoa e ovos). Para cortar o excesso de ovos e de doçura, um sorbet de limão servido num copo de shot faz o contraponto.
De menos positivo neste almoço esteve apenas a escolha dos vinhos: o polvo merecia um vinho com maior acidez do que o Quinta do Carmo branco 2006, e o Esporão tinto 2003, embora apresentasse ainda alguma vitalidade, já se encontrava longe do seu auge. E será que tudo correu bem por se tratar de um almoço para a imprensa (e afins)? Talvez, mas não creio que alguém aprenda a cozinhar de repente só para impressionar meia dúzia de convidados de Lisboa.
É sempre um prazer poder sair planície fora e reconfortar o estômago e os sentidos num daqueles lugares tradicionais de sempre. Mas sabe também muito bem poder estar num ambiente mais requintado e sossegado onde os produtos e princípios da gastronomia tradicional são valorizados e apresentados de uma forma menos óbvia.


texto publicado originalmente no suplemento Outlook (Semanário Económico) em 31 Janeiro 2009


Contacto: Hotel M’Ar de Ar Muralhas, Travessa da Palmeira 4/6 - Évora ; Telef: 266739300

Sem comentários: